quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Eu, Melómano Anónimo, me confesso.

Admito: a música é o meu grande (e, diria com alguma segurança, único) vício.
A minha dependência é profunda, prolongada no tempo e nos diferentes espaços que me rodeiam. 
Durante muito tempo chamei-lhe “um prazer”. Mas o que acontece quando, de repente, nos damos conta que pura e simplesmente não podemos passar sem esse “prazer”? O que acontece quando passamos a depender de um som quase tanto como do ar que respiramos? O que acontece quando necessitamos de enquadrar cada momento do nosso dia-a-dia com uma canção, como se necessitássemos de uma banda sonora para a nossa vida?
Poucas coisas se equiparam ao momento em que, pela primeira vez, depois de comprarmos um determinado disco, descobrimos uma qualquer canção brilhante, um qualquer fragmento genial ou qualquer sopro de inspiração. A maravilha da descoberta provoca um sentimento quase infantil de assombro e desassossego, que não sabemos se havemos de partilhar com o resto do mundo ou guardar discretamente no nosso bolso para que ninguém estrague.
Admito: não conseguiria viver sem a música. É uma fraqueza forte (por paradoxal que pareça). E, para além do som, não conseguiria viver sem o elemento físico e carnal da música: os discos. Digitais ou em vinyl. De 45 rotações ou em digipack. O acto da descoberta tem também essa realidade bidimensional, associando o embrulho à própria peça de arte.
O momento da compra dos discos (sim, porque infelizmente para mim, não consigo “sacar” ou “roubar”) representa o período da fraqueza, da tentação. Já comprei discos em tantas cidades diferentes, de Berlim a Barcelona, de Londres a Lisboa, e a sensação é sempre a mesma: uma espécie de sentimento de conquista de um bem raro, quase único, que agora não será de mais ninguém.
E depois, como dizia um amigo meu numa revista da concorrência, temos o próprio acto de arrumar os discos, que é um momento sacramental, incompreensível para os que não sofrem da mesma doença. A catalogação, a disposição na prateleira e a metodologia de arrumação são, por si só, motivo para as mais elaboradas conceptualizações teóricas no seio da comunidade melómana. 
Não é fácil viver com este vício, com esta doença.
Não é fácil ter que dormir todos os dias com o iPod a tocar nos ouvidos e, em vez de embalar para o sono, procurar cada pormenor e cada detalhe em cada canção que passa. E não é fácil domar toda a informação que se vai acumulando no nosso cérebro e no nosso coração de cada vez que ouvimos um disco: quem é o produtor, em que estúdio foi gravado, que músicos tocaram, a quem agradeceram no “booklet” e o que se passava nas suas vidas no momento em que compuseram a canção. E temos também as letras das canções, que, progressivamente, vão ocupando espaço no nosso disco duro cerebral, como se de um vírus se tratasse.
Há muitas semanas que ando para escrever isto. Reflecti bastante sobre isso. Afinal, não é suposto que este espaço seja confessional. Mas precisava de deitar isto cá para fora, como se estivesse numa reunião dos melómanos anónimos: “Olá, o meu nome é Rui e sou viciado em música”.
Admito.

(texto originalmente publicado no Jornal "O Verdadeiro Olhar", em 15/04/2009)